Todo dia é dia de índio: A inserção na sociedade como forma de resistência

17 de abril de 2019 - 11:14 # # # #

André Victor Rodrigues Texto
Thiara Montefusco Fotos

A luta por afirmação dos povos indígenas no Ceará também se faz por meio da ocupação de espaços para além de suas aldeias. Nesta segunda matéria da série especial, índios reforçam a importância de adentrar no Ensino Superior e no mercado do trabalho para fortalecer a representatividade e combater de frente os preconceitos contra suas existências

O índio não precisa provar sua existência vivendo dentro do estereótipo e da visão preconceituosa que se construiu em torno da cultura indígena. Ele não estará necessariamente pintado e de cocar, dançando em ritual ou praticando caça-pesca na mata. Os povos indígenas têm se inserido, ao longo das décadas, cada vez mais na rotina dos que não são índios. Cursando faculdades, assumindo vagas nos empregos para os quais se capacitam, apreciando lazeres e mostrando poder aquisitivo. E tudo isso, conforme lideranças indígenas apontam, não significa a negação da cultura. Pelo contrário: é inserido no cotidiano da sociedade que se fortalece a afirmação do índio, de onde ele veio, quem ele é e o direito dele estar onde quiser estar.

Faz parte da rotina semanal de João Paulo, 33, ir de Maracanaú até Redenção. Por lá estuda no Campus das Auroras da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), onde cursa Mestrado Interdisciplinar em Humanidades. Para acompanhar as aulas, chega aos corredores universitários de calça jeans, blusa de algodão, cabelo feito bem penteado e brinco na orelha. Estética de um jovem comum, mas que jamais irá contradizer o fato de ele ser o cacique dos Pitaguary, com nome indígena de Kauã Pitaguary do Penacho Branco.

“Existe um ditado que sempre ouvi dos meus antigos que diz que eu posso ser quem você é sem deixar de ser o que sou. Eu posso ocupar as universidades, eu posso ter bens, posso ter um carro, posso estudar, sem perder a essência da minha luta, do meu território, da minha convicção de pertencer, de ser e de estar”, conta o mestrando.

Formado em Licenciatura Intercultural Indígena pela Universidade Federal do Ceará (UFC), o Pitaguary hoje dirige a Escola Indígena Chuí, da rede pública estadual de ensino, no município de Maracanaú. Em sua pesquisa para pós-graduação, ele investiga a espiritualidade dentro dos Ritos da Jurema (tradição religiosa de povos ancestrais), com recorte na celebração pelo povo Pitaguary. “Vou fazer uma ligação da espiritualidade com o movimento do luta. A força encantada à frente da luta, como nos apoiamos no espiritual para buscar os direitos por territórios. Não se há muitos escritos falando sobre, então vou trazer essa questão para a academia e nos fazer presentes neste campo.”

 

Kauã destaca que hoje é fundamental que os índios busquem o conhecimento, desbravem o mundo que lhes é exterior, para trazer ainda mais educação e desenvolvimento e para que a identidade indígena continue se reafirmando com mais relevância e representantes conscientes da sua ancestralidade. Além disso, os índios também passam a exercer mais o seu direito de ir e vir, participando ativamente da vida urbana cearense.

“Em momentos do passado a gente precisou se esconder. Hoje a gente evidencia a nossa luta e resistência ocupando os espaços. Onde a gente pode chegar, adentramos para falar da nossa história e do nosso sofrimento. Para sermos um símbolo dessa resistência, daquilo que a gente reivindica como sendo direito dos povos indígenas. Nós temos fortalecido ao longo do tempo o processo de autoafirmação, para que dentro da comunidade todos se reconheçam enquanto índios e combatam o discurso de opositores que afirma não existirem índios e não termos direito às nossas terras”.

Preconceito

O cacique já vive hoje uma realidade melhor do que quando estava na idade escolar. Com a entrada do índio nos mais variados setores do corpo social cearense, a comunidade indígena consegue trazer novos conceitos que colaboram na sua estrutura. Como por exemplo, o estabelecimento das escolas indígenas, com professores índios formados lecionando e com ambiente adequado para as crianças crescerem longe de preconceitos e orgulhosas de suas raízes.

“Eu não cheguei a estudar em escola indígena. Fui para escola convencional, e sofri muito preconceito. Sempre tinha aquela situação de me perguntar se eu tinha chegado de canoa pelo fato de eu morar em terra indígena e de eu morar longe do Centro da cidade”, recorda Kauã. Ele afirma, porém, que graças aos seus antigos isso foi vencido e ele sempre manteve o orgulho de ser índio. Hoje, graças ao preparo dos índios desbravando universidades e experiências profissionais, é que a cultura indígena passa a ser mais protegida e difundida.

Estratégia do conhecimento

Não há uma única voz indígena cursando mestrado na Unilab. Além do cacique Pitaguary, Suzenalson Kanindé, 35, amplia a representação dos povos dentro da convivência acadêmica. Formado pela UFC em Licenciatura Interdisciplinar Indígena e professor de Filosofia, Sociologia e História, ele explica que quanto mais índios estiverem realizando seus objetivos pessoais, mais avanço se terá no combate à exclusão e estranhamento da figura do índio dividindo os espaços com o não índio.

“Estamos na luta por mais conhecimento para as populações indígenas no Estado, para dar mais oportunidades à nossa comunidade. E também vivenciar as outras formas de ensino do não índio, porque é um jeito diferente e a gente pode encontrar suportes para levar ao ensino dentro das aldeias e somar aprendizados. São novas experiências que chegam para construir. Vamos assim estabelecendo estratégias de conhecimento para nos impormos como seres ativos dentro da sociedade”, afirma.

Ativo defensor do povo Kanindé, Suzenalson lembra que, em tempos antigos, o índio não podia se apresentar como tal perante o colonizador porque assim seria morto. O massacre e varredura dos povos indígenas no Ceará fez com que até hoje ainda seja necessário um trabalho pelas aldeias para que indivíduos passem a se aceitar enquanto índios. “Recentemente, coisa de 20 anos atrás, com a formação do autorreconhecimento, é que muitos da população indígena estão se redescobrindo como ser índio novamente. Por isso precisamos mostrar que estamos em todo lugar. Existimos e temos a cultura em contato com nossos guardiões da memória.”

Dentro ou fora das salas de aula, nas ruas e nos eventos sociais, os índios batalham em barricadas para reconquistar o que foi historicamente negado a eles. E fazer isso com a liberdade de escolher o que absorver das culturas modernas e como se deve preservar seus costumes e tradições.

Dia do Índio

A ser celebrado na próxima sexta-feira (19), o Dia do Índio foi oficializado no Brasil em 1943, durante governo do presidente Getúlio Vargas. A data tem por objetivo lembrar a todos da importância de se preservar a identidade, dos direitos e a cultura das populações indígenas no país. Contudo, para os mestrandos Kauã e Suzenalson, a data é apenas um detalhe no calendário. É a voz dada aos índios para sua luta diariamente que importa aos povos.

“Nós não temos referência a esse dia. O dia 19 não é comemorado. Porque é como se fosse bastante apenas um dia para lembrar dos nativos do Brasil. Além disso é cheio de preconceitos, onde é fortalecida a ideia das crianças irem às escolas e voltarem pintadas e com cocar. Todos os dias nossos são de luta e afirmação”, diz o cacique Pitaguary. Para seu povo, há dias mais importantes. Como é o caso do dia 12 de junho, por exemplo, quando se comemora a festa da Mangueira Sagrada.

“É o dia dos mortos, quando cultuamos os nossos ancestrais que tombaram, foram torturados, naquela mangueira presente em nosso território. Também fazemos menção a um fato que aconteceu no início da luta do povo Pitaguary, quando a mangueira chorou em pleno verão, caiu água dela, e o pajé da época disse que a partir daquele dia ela seria sagrada para nós e não maldita como os nossos antigos falavam por conta das torturas dos colonizadores. Passou a significar luta. Então passou a ser o lugar mais sagrado dos Pitaguary”, conta ele sobre a data.

Para o índio Kanindé, o dia 19 até causa a lembrança da temática indígena. Mas é a mobilização dos povos indígenas que fazem o calendário se tornar relevante. “O que importa para nosso povo são as semanas indígenas realizadas no ano, com as lideranças mais velhas, com a prática dos jogos tradicionais indígenas, as festas de comidas típicas, a formação dos ritos e dos rituais. São essas as manifestações diárias dos índios.”

Confira amanhã, na terceira matéria da série especial “Todo dia é dia de índio”, as experiências no âmbito educacional e de saúde voltadas para a população indígena no Ceará.

Leia a primeira matéria da série