Abril indígena: povos indígenas desconstroem estereótipos e afirmam suas identidades fora da aldeia

19 de abril de 2021 - 14:45 # # # # # # # #

Ascom SPS - Texto

Caciques, doutores, xamãs e advogados. Aldeados e urbanos. Os povos indígenas são diversos, plurais e reivindicam o reconhecimento de suas identidades. Neste 19 de abril, a figura folclórica do imaginário popular dá lugar às histórias de indígenas reais, que ocuparam a política, as universidades, a saúde e muitos outros espaços historicamente negados aos povos originários deste País. No Ceará, vivem 15 povos indígenas, espalhados por 18 municípios. São comunidades que guardam com orgulho suas manifestações culturais e tradições milenares e que lutam pelos seus territórios, costumes e tradições.

Weibe Tapeba (37) puxa o fio dessas histórias e fala sobre sua trajetória, desde quando, ainda garoto, acompanhava os pais nas reuniões e assembleias para reivindicar as pautas do movimento indígena. “Eu sempre soube que a minha vida seria dedicada à causa do meu povo”, explica.

Liderança indígena, Weibe nasceu na aldeia Lagoa dos Tapebas, em Caucaia, município onde exerce seu segundo mandato como vereador. “Tenho muito orgulho do meu lugar, do meu povo e da minha trajetória até aqui, que está completamente entrelaçada com as minhas raízes. Nós estamos ocupando cada vez mais espaço no parlamento, levando nossas pautas e garantindo que as vozes dos povos tradicionais e comunidades quilombolas sejam ouvidas. Eu acredito muito nestes espaços como instrumentos de luta para nós, povos indígenas”, pontua o jovem, que, em 2010, entrou para o curso de Direito para defender as causas do povo Tapeba.

Desconstruindo Estereótipos

“Na época que fiz minha faculdade enfrentei muito preconceito. Ouvi muitas brincadeiras racistas por ser indígena e estar em um ambiente que não era uma aldeia. Eu sentia como se o fato de estar ali incomodasse os outros, sabe! Mas não me deixei abater por isso, segui atrás dos meus objetivos e me tornei o primeiro advogado indígena do Ceará”, completa Weibe, que há seis anos faz parte do Programa de Proteção aos Defensores e Defensoras dos Direitos Humanos (PPDDH), coordenado pela Secretaria da Proteção Social, Justiça, Cidadania, Mulheres e Direitos Humanos (SPS). “Devido à minha luta, sofro constantes ameaças, mas isso nunca me impediu, nem impedirá, de seguir nessa escolha de vida que é minha missão”, completa ele, que também integra a Rede Nacional de Advogados Indígenas do Brasil e assessora a Federação dos Povos Indígenas do Brasil.

A coordenadora da Federação dos Povos e Organizações Indígenas do Ceará (Fepoince) e assistente técnica da Coordenadoria Especial de Políticas Públicas para Promoção da Igualdade Racial (Ceppir), Ceiça Pitaguary, destaca que a população brasileira não aceita ainda a diversidade e a riqueza da cultura indígena. “Quando não somos selvagens, somos considerados modernos demais. No imaginário do povo brasileiro ainda somos figuras folclóricas, estáticas, que não podem evoluir sua cultura. Nós estamos aqui para quebrar esses estereótipos e mostrar a esta sociedade que nós podemos ocupar qualquer espaço. Nosso dia a dia é no front, lutando pela demarcação de terra, por educação e uma saúde de qualidade”, pontua ela, lembrando também que é preciso desconstruir essa figura romantizada ou ideal do que é ser indígena.

“Não queremos ter nossa identidade negada o ano inteiro e lembrada no dia 19 de abril de uma forma completamente equivocada e distorcida. Somos brasileiros e transformamos este mês numa mensagem da nossa resistência. Nós, povos indígenas temos muito a contribuir com esta sociedade”, completa Ceiça.

Assim como Weibe, Tainara Tapeba (18) carrega com orgulho o nome da sua etnia. A jovem que é intérprete de libras, se realiza na profissão que escolheu e conta que os preconceitos que teve que enfrentar não impediram que ela realizasse seu sonho. “Eu sempre tive vontade de aprender outra língua. Lembro que quando via um grupo de surdos se comunicando através da língua de sinais eu sentia uma vontade imensa de  aprender e de também me comunicar com eles. Foi então que me inscrevi numa escola profissionalizante e comecei a me aprofundar nesta profissão”, explica Tainara, que presta serviço para equipamentos culturais da cidade, como o Theatro José de Alencar, em exibição de lives, interpretação de músicas e outras programações.

“Algumas pessoas ainda se surpreendem quando descobrem que sou indígena. Como se pelo fato de ser indígena, eu também não pudesse ser intérprete. São em situações como estas, que eu percebo o quanto nós precisamos ocupar todos os lugares e afirmar nossas identidades”, pontua Tainara.

“Desde muito cedo, ainda na escola, eu entendi que teria que lidar com uma sociedade que não enxerga a riqueza e a potência que há em nós, povos indígenas. Então, sempre que tenho a oportunidade, gosto de deixar claro para as pessoas que ser indígena não significa apenas estar dentro da aldeia e viver da caça e do artesanato. Nós somos tudo isso, sim e também muitas outras coisas. E acho importante que as sociedades cearense e brasileira nos vejam de verdade, tal como somos, sem rótulos e estereótipos ”, relata a intérprete.

Socorro França, titular da Secretaria da Proteção Social, Justiça, Cidadania, Mulheres e Direitos Humanos (SPS), ressalta que o Estado vem avançando no reconhecimento das identidades, da memória e das histórias dos povos indígenas. “Temos estabelecido um diálogo com as lideranças de diversas etnias indígenas do nosso Estado, sempre ouvindo atentos às demandas que eles nos trazem. Nesse sentido, ficamos felizes de ter uma Coordenadoria diversa e com representatividade, na medida em que contamos com uma profissional indígena, a Ceiça Pitaguary. Esta é uma missão que tenho muito orgulho de estar à frente”, destaca a gestora.

Ciência e tradição: Profissionais da saúde relatam suas conquistas e experiências fora da aldeia

Juliana Pitaguary (34) e Aparecida Araújo (43) são profissionais da Saúde, mas não é só isso que elas têm em comum. As duas cresceram na aldeia Santo Antônio, do povo Pitaguary, em Maracanaú. Juliana é enfermeira e trabalha nos municípios de Pacatuba e Fortaleza, atendendo na Atenção Básica e na Urgência e Emergência. Já Aparecida é a primeira cirurgiã dentista indígena do Ceará e tem o sonho de trabalhar dentro da sua aldeia. A história delas é de conquistas e de resistências: duas mulheres que dominaram a ciência e que também recorrem à medicina das plantas e raízes que aprenderam com seus ancestrais.

Aparecida tem sua trajetória marcada pela conquista e dedicação. “Hoje eu tenho muito orgulho do que conquistei e dedico tudo isso à minha família, ao meu povo. Se eu cheguei até aqui é porque encontrava forças na minha comunidade, onde nunca faltou incentivo para que eu corresse atrás do meu sonho”, explica a cirurgiã dentista, que é filha do curandeiro José Augusto. “Meu pai é reconhecido tanto na aldeia como por pessoas de fora da comunidade. Ele nos criou com a medicina natural. Eu cresci vendo ele fazer lambedores, chás, qualquer pessoa que chegasse na nossa porta saia com um remédio natural, extraído das plantas”, conta Aparecida.

“Mesmo depois de formada e de conhecer a medicina tradicional, eu sigo acreditando muito no poder de cura da natureza. Não vejo nenhum problema em aliar as duas coisas. Nós temos plantas com propriedades antiinflamatórias e analgésicas, e isso é um saber que não deve se perder, eu faço questão de passar essa medicina natural para as minhas filhas e para os pacientes que demonstram estar abertos a conhecer esta outra abordagem”, conta a dentista, que lembra  o quanto essa “medicina popular” ainda é marginalizada.

“Nós temos que desconstruir estereótipos sobre quem nós somos o tempo inteiro e eu não fiquei isenta disso. Na faculdade tive que enfrentar olhares de dúvida sobre minha capacidade. Não foi fácil, muitas vezes cheguei a me questionar o que estava fazendo ali, mas sempre que batia uma insegurança eu me agarrava no meu sonho, e na força que vinha do meu povo. Hoje eu me sinto muito realizada e desejo um dia trabalhar dentro da minha aldeia, mostrando que nós podemos fazer tudo que qualquer não indígena faz”, completa Aparecida.

Juliana Pitaguary trabalha na linha de frente da pandemia: na Urgência e Emergência. Juliana começou na área da saúde como técnica de enfermagem, atuando na Casa de Saúde do Índio e também no Pólo Indígena Pitaguary. “Eu me orgulho da minha trajetória. Para chegar até aqui tive que enfrentar muita coisa, mas nunca pensei em desistir”, ressalta a enfermeira.

“Outro dia, estava em casa e decidi fazer uma pintura jenipapo no meu corpo, numa tentativa de me conectar com minha ancestralidade e encontrar forças para seguir trabalhando mesmo com tanta pressão, medo e tudo que a pandemia vem despertando. Na mesma semana em que fiz a pintura, recebi olhares curiosos e até críticos no ambiente de trabalho, como se por ser enfermeira e estar em um ambiente formal eu tivesse que abrir mão da  minha identidade, e dos simbolismos que me trazem força”, desabafa Juliana, que também teve sua aparência questionada, tanto na faculdade, quanto no trabalho.

“O meu cabelo cacheado e a cor da minha pele foram questionados muitas vezes. As pessoas diziam que nunca tinham visto indígena de cabelo cacheado. Infelizmente, ainda existe muito desconhecimento sobre a história do nosso Estado. Para mim é uma missão estar nesses locais e me afirmar enquanto indígena. Aprendi a ter muito orgulho da minha etnia e das nossas tradições”, completa Juliana Pitaguary

Nestas histórias de indígenas reais, não há espaços para figuras romantizadas ou folclóricas. Ainda há um longo caminho a percorrer nesta caminhada pelo reconhecimento dos povos indígenas no Brasil. O Estado do  Ceará vem se destacando na articulação de políticas pelo reconhecimento dos territórios e diversidade dos povos indígenas. No ano passado, o Governador Camilo Santana sancionou a Lei 17.165, reconhecendo a contribuição e direitos dos povos indígenas cearenses.

Povos indígenas do Ceará

Anacé, Gavião, Jenipapo-Kanindé, Kalabaça, Kanindé, Kariri, Pitaguary, Potiguara, Tapeba, Tabajara,Tapuia-Kariri, Tremembé,Tubiba-Tapuia,Tupinambá e Karão.

Segundo a ONU, existem cerca de 370 milhões de indígenas em 90 países, o que representa em torno de 5% da população mundial. Trata-se de mais de 5 mil grupos diferentes que falam aproximadamente 7 mil línguas. No Brasil, de acordo com dados do Censo Demográfico realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2010, há 896,9 mil indígenas presentes em todos os estados brasileiros. São 305 etnias, que falam 274 línguas. Há ainda um grande número de povos isolados, não contabilizados pelo Censo. O Brasil tem a maior concentração de povos isolados conhecida no mundo.