“Meu lema de vida é a busca pela Justiça Social”, afirma Socorro França

17 de março de 2022 - 10:49 #

Larissa Falcão - Ascom Casa Civil - Texto
Eduardo Abreu e Ariel Gomes - Fotos

Uma mulher em constante luta pela liberdade, inclusão e dignidade humana. Assim é Maria do Perpétuo Socorro França Pinto, uma das nove personalidades agraciadas com a Medalha da Abolição 2020-2022. “Meu lema de vida inteira até hoje, aos 78 anos de idade, é a busca pela Justiça Social. Essa sempre foi a minha luta, onde quer que eu esteja; no Ministério Público; nas secretarias de Estado; nos conselhos; nas universidades. Em todo momento, eu sempre busquei a Justiça Social”, enfatiza Socorro França.

Nascida em 22 de novembro de 1943, em São Luís, Capital do Maranhão, a homenageada é ex-procuradora-geral de Justiça do Ceará, com passagens importantes pelo Poder Executivo estadual. Atualmente, Socorro França é a titular da Secretaria de Proteção Social, Justiça, Cidadania, Mulheres e Direitos Humanos (SPS). Para ela, ser agraciada com a mais alta honraria concedida pelo Governo do Ceará é uma oportunidade de revisitar a própria trajetória e celebrar conquistas coletivas.

“Alegria de olhar para trás e ver uma ação linda do povo, a ação do Dragão do Mar, o Chico da Matilde, que disse: “a partir de agora, eu não vou mais transportar escravos para o Rio de Janeiro”. Esse movimento popular que levou o Ceará a ser a primeira província a criar, em Redenção, a lei que libertava os escravos. A Abolição passa pelo Estado do Ceará, passa por um povo guerreiro que nos ensinou [no passado] o que nós estamos criando e construindo hoje”, celebra.

A comenda, instituída em 1963, reconhece o trabalho relevante de brasileiros para o Estado do Ceará ou para o Brasil. A solenidade de entrega será realizada no próximo 25 de março, dia em que os cearenses lembram a Data Magna do Ceará. O Estado foi pioneiro ao garantir em quatro anos antes do restante do Brasil, em 25 de março de 1884, a liberdade dos negros que aqui foram escravizados.

Socorro França, que soma quase 60 anos de atuação no serviço público, dos quais 48 anos foram dedicados ao Ministério Público do Ceará (MPCE), se emociona ao relembrar todas as lutas pessoais e profissionais em busca de um País mais livre. Segundo ela, sempre defendendo o respeito, sem discriminação por motivo de classe social, raça, cor, etnia, religião, orientação sexual ou identidade de gênero.

“Posso dizer que, depois dos nascimentos dos meus filhos, [a Medalha] é a maior alegria que eu possa ter. Ela está aqui guardada no meu coração e, obviamente, minha família guardará em seu coração também. É uma homenagem muito importante para minha vida porque sempre lutei por esse sentimento libertário, mas eu sempre fui uma servidora pública. Então eu quero dividir essa homenagem com todos os servidores públicos do Estado do Ceará. É a nossa homenagem”, dedica.

Da Ilha Rebelde à Terra da Luz

Ao enfatizar o trabalho feito no coletivo, a ex-procuradora-geral de Justiça defende a importância de não caminhar sozinha. Desde os primeiros passos como ativista – ainda na adolescência, em solo maranhense –, ela compreendeu a importância de aliar seu espírito inquieto aos propósitos de outras pessoas.

Foi assim que recebeu o convite para ingressar, aos 12 anos de idade, na Juventude Estudantil Católica (JEC) como pré-jecista, no momento em que a ação social da Igreja Católica se tornava muito forte no Brasil. Posteriormente, foi eleita, aos 15 anos, presidente da JEC. Um período marcado pela militância ao lado dos estudantes secundaristas em São Luís, também conhecida como Ilha Rebelde do Maranhão.

“Eu tinha uma militância muito forte nas escolas em São Luís, na busca sempre do reconhecimento dos direitos, como a carteira profissional. Esclarecendo os estudantes, mostrando para eles os direitos que nós tínhamos, e os que deveríamos alcançar. A Igreja Católica me deu substrato para lutar contra a intolerância de todas as formas; de mostrar que todos nós somos iguais não só perante a lei mas perante a Deus”, rememora Socorro, que sempre teve na fé e na educação caminhos para a liberdade desejada.

Na universidade, ainda no Maranhão, Socorro também militou na Juventude Universitária Católica (JUC) até 1964, ano em que foi instaurada a Ditadura Militar no Brasil. “Eu não tenho medo de dizer que, graças a Deus, na Igreja Católica tive dois grandes orientadores espirituais. Dom José Delgado, que era nosso Arcebispo em São Luís, e depois veio preso para a 10ª Região Militar. E Dom Fragoso, que depois veio para Crateús”, cita.

A mudança da estudante para terras cearenses, que a princípio foi para acompanhar o marido José Maria Ribeiro Pinto, com quem hoje comemora mais de 50 anos de casada, transformou-se numa trajetória incansável que, ano após ano, se entrelaçou aos avanços no campo dos Direitos Humanos e das Políticas Públicas. No Ceará, a jovem concluiu o curso de Direito na Universidade Federal do Ceará (UFC).

“Ao chegar aqui fui muito bem acolhida, a partir daí eu me senti em casa dentro na universidade, em pleno apogeu do AI-5 [Ato Institucional 5, de 1968]. Você imagina todo trabalho, luta e resignação que nós tivemos de 1964 até o AI-5, quando as coisas pioraram muito. Eu me emociono muito quando falo sobre isso, mas nunca perdi a esperança de lutar”, ressalta.

Hoje, a jurista conta com três graduações (Direito, Administração e Economia) e um mestrado em Direito Público. Atualmente, cursa MBA em Empreendedorismo Social e Gestão do Terceiro Setor. Sobre a experiência em sala de aula, Socorro França também esteve no outro lado, atuando como professora na educação básica e no ensino superior.

Protagonismo em defesa da sociedade

Em uma época em que as mulheres eram consideradas incapazes, Socorro França destaca que ter sido aprovada no MPCE foi uma das primeiras conquistas inesquecíveis. Resultado de muito estudo, ela foi aprovada em primeiro lugar no certame, com nota 9.72.

“[No Ceará] Eu encontrei um porto seguro onde eu pude colocar para fora todos os meus anseios e meus sonhos. Estudei muito para o concurso do Ministério Público. Não falo por vaidade, mas apenas para transferir para juventude que aí está, e às vezes não tem mais sonhos e perdeu a esperança, que ela nunca perca esperança, que tudo é possível. Desde que você faça boas escolhas, marque seu objetivo e tenha propósitos”, destaca Socorro, que iniciou a carreira na cidade de Alto Santo.

A jurista afirma que nunca se limitou a ser uma mera acusadora, como era vista a função de promotora de justiça à época, porque era uma mulher de liberdade. “Então idealizamos na época um objetivo que era defender a sociedade. Foi aí que a gente criou e apresentou ao colégio de procuradores um projeto criando um órgão de defesa comunitária, o hoje tão conhecido Decon [Programa Estadual de Proteção e Defesa do Consumidor]”, pontua França.

A defesa da sociedade cearense se deu na terra e no mar. Um fato pouco conhecido é que Socorro França atuou, em 1986, no primeiro inquérito civil público movido por um Estado brasileiro. Feito pelo Estado do Ceará, o procedimento objetiva retirar a Praia de Canoa Quebrada das “mãos” da Guiana Francesa. “Com o inquérito civil eu consegui derrubar, hoje a Canoa Quebrada é nossa. Eu botava minhas canelas naquela areia, subindo e descendo com os moradores e pescadores nativos da Canoa Quebrada, fazendo revolução. Em Cascavel também teve uma comunidade que a gente conseguiu libertar. Assim como Moitas. Tudo isso através dos inquéritos civis”, registra.

À frente do Decon, enquanto coordenadora-geral, Socorro atendia cerca de 400 pessoas na década de 1980, sem cansaço. Uma luta que, segundo ela, sempre a rejuvenesceu. O bom trabalho a projetou para integrar o Conselho Nacional de Defesa do Consumidor, participando do debate que instituiu o Código de Defesa do Consumidor.

“Andei e trabalhei por esse Brasil todo, levando a defesa do consumidor, que na realidade é a defesa do ser humano. Era um absurdo o povo não ter escolha. Aí eu batalhei muito. Batalhei tanto que em 1988, quando foi criada a nova Constituição [Federal], conseguimos inserir nela três artigos muito importantes: no Artigo 5º, falando da defesa do consumidor; no Artigo 160, falando da defesa do consumidor dentro da ordem econômica; e nas disposições transitórias, criando o Código de Defesa do Consumidor dentro de 120 dias, mas que só foi criado dois anos depois, em 1990”, detalha.

Socorro França, que chefiou o MPCE por cinco mandatos, capitaneando diversas transformações institucionais importantes, defende que as conquistas obtidas a partir da criação da Constituição Federal de 88 são inegociáveis. Ela pontua que foi oportunizado à sociedade brasileira um desenvolvimento humano jamais visto anteriormente, por meio da existência dos conselhos.

“Eu conheço e estudei todas [constituições federais], de 1924 até a de 1988. Estudei uma a uma. E não vejo nenhuma com o perfil da de 88 na inclusão e respeito à dignidade do ser humano. Quando eu falo da constituição me empolgo, porque o que nós temos que fazer é respeitá-la e fazer com que se cumpra o que ali está. É por isso que hoje eu estou sentada aqui, em uma Secretaria de Proteção Social, de Justiça, de Cidadania, de Respeito às Mulheres, de Direitos Humanos e de Prevenção às Drogas. Isso é um mundo onde podemos colocar a Constituição a serviço de todas essas politicas”, avalia a jurista, que também foi presidente do Grupo Nacional dos Direitos Humanos (GNDH).

Mais Cidadania, Inclusão e Igualdade

Ainda enquanto procuradora-geral de Justiça, Socorro França se licenciou para pleitear a Prefeitura de Fortaleza em 1996, mas não foi eleita. Depois, aceitou o convite do então governador Tasso Jereissati para integrar o quadro do poder executivo estadual, assumindo como ouvidora-geral do Estado.

“Quando fui ouvidora, o que eu mais ouvia era que o povo não tinha cidadania, que ninguém tinha registro de nascimento nem carteira de identidade. Foi na Ouvidoria que foi criado o Caminhão da Cidadania, a Casa do Cidadão. Lembro de uma reportagem do Diário do Nordeste que [registrou] em um ano foram tirados quase dois milhões de documentos. Foi lá na Ouvidoria que eu ouvi que poderíamos minimizar a violência. Pensando nisso, criamos a mediação comunitária, que eu vejo como um instrumento de paz social”, cita.

Pedir aposentadoria do MPCE após cinco mandatos foi uma decisão motivada pela vontade de ajudar mais efetivamente a juventude cearense. O desejo se concretizou com o convite do governador Cid Gomes para ser assessora de Políticas Públicas sobre Drogas no Estado do Ceará, em 2012. Na gestão do governador Camilo Santana, a jurista comandou a Controladoria Geral de Disciplina dos Órgãos de Segurança Pública e Sistema Penitenciário (CGD); depois esteve à frente da extinta Secretaria de Justiça e Cidadania (Sejus) antes de assumir a SPS.

Entre os muitos programas e projetos executados pela SPS para assegurar mais cidadania e inclusão no Ceará, Socorro França destaca o trabalho desenvolvido na em defesa da Igualdade Racial, com destaque para a Campanha Ceará sem Racismo, e no fortalecimento da Assistência Social e do Programa Mais Infância Ceará, política pública idealizada pela primeira-dama Onélia Santana.

“Você não tinha lugar para a criança brincar, para os pais interagem com as crianças. Hoje, já são quase 500 equipamentos entregues aos municípios cearenses. Ela [primeira-dama] criou em todos os municípios as brinquedopraças, as brinquedoscreches, os CEIs [Centros de Educação Infantil], e o Cartão Mais Infância, que tem 150 mil famílias recebendo todos os meses [a transferência de renda do] Cartão Mais Infância. Não existe uma política pública [de Atenção à Primeira Infância] igual no País. Ela diz que aprendeu comigo, mas sou eu que estou aprendendo com ela. As mulheres têm transformado esse Estado e o País”, reforça.

Ainda no campo da luta das mulheres, a mais recente conquista foi a entrega da primeira Casa da Mulher Cearense, em um 8 de março histórico. Localizado na Região do Cariri, o equipamento da SPS vai acolher e realizar atendimento humanizado a mulheres vítimas de violência em 29 municípios caririenses. “[Na inauguração] Eu vi o coletivo de mulheres vibrando e lutando para que a gente possa ter vez, voz e ser respeitada”, frisa.

Na pandemia da covid-19, a SPS sempre esteve na linha de frente para fazer com que as ações do Estado chegassem aos cearenses mais atingidos pela crise sanitária e econômica.

Sobre o próprio futuro, Socorro França, que venceu a covid em 2021, é categórica ao afirmar que deseja continuar servindo à sociedade cearense . “Se eu tiver ainda pernas e cabeça boas, eu quero trabalhar. Aqui não é conversa piegas, acho que eu já passei dessa fase de autoafirmação, tudo isso já ficou para trás. O que efetivamente me resta é a vontade de servir, servir, servir. Meu propósito de vida foi este”, considera.