Dia Nacional da Consciência Negra: as múltiplas vozes negras da Segurança Pública do Ceará

20 de novembro de 2023 - 17:25 # # # # # # #

Ascom SSPDS - Texto e Fotos

Um rapper uma vez me ensinou que todo o peso da discriminação racial vem à tona quando um pacote de biscoito é aberto no supermercado. Em alusão ao Dia da Consciência Negra, 20 de novembro, a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS) traz o relato dos próprios servidores. A busca é por uma reflexão sobre como o racismo se torna visível no cotidiano. Embora nem todos se reconheçam pela própria raça da mesma forma, a disparidade social ainda reside no espanto de algumas pessoas ao se depararem com um negro em uma posição de destaque.

Os personagens dessa história são pessoas das mais diversas áreas de conhecimento, que ascenderam na vida quando se tornaram funcionários públicos. Nem todos vieram das periferias urbanas, embora todos eles tenham encontrado um refúgio na Educação, nem sempre seguro contra o preconceito racial, e conseguiram se realizar como pessoas para poder viver com dignidade. São todos filhos de pretos, que vieram de outros pretos e, se hoje podem viver em melhores condições, é porque ainda precisaram resistir ao racismo.

“O Dia da Consciência Negra é uma data muito importante para perceber as nossas diferenças e como somos tratados de uma forma diferente a partir dessas diferenças. Não é um dia para as pessoas negras carregarem nas costas, é mais um dia para as pessoas brancas refletirem sobre o seu papel nisso. E o que eu percebo é que, ao longo dos meus 30 anos, o papel de combater o racismo é posto no colo das pessoas negras, mas é um papel ainda maior das pessoas brancas, que trazem toda essa problemática”, reflete a perita legista Silmara Pereira Sousa, da Perícia Forense do Estado do Ceará (Pefoce).

Para ela, a convivência com a disparidade social entre brancos e negros veio do berço. Silmara é filha de uma dona de casa e de um trabalhador da construção civil, ambos de baixo nível de instrução. Morou até os 25 anos na Comunidade do Rodo, Zona Oeste do Rio de Janeiro (RJ). A caçula foi a primeira da família a entrar no Ensino Superior, em 2012, e tornou o feito notável ao escolher o curso de Odontologia. Terminou a faculdade com uma bolsa integral do Programa Universidade para Todos (Prouni), do governo federal, mas como calcular o peso diário de duas horas no transporte público para poder se graduar?

Família e Educação

Não à toa, Silmara reflete a data de hoje sob o olhar da reparação histórica. Ela não é uma vencedora porque terminou um curso de elite. Ela resistiu e ainda resiste, porque a conclusão de uma faculdade, ou um emprego público, não é o final da discriminação racial.

“Já passei por diversas situações por parte da população, de advogados e até de bandidos. Quando você é negro, principalmente numa delegacia distrital, vão te perguntar se você é inspetor, escrivão, ou um outro advogado”, ilustra o titular da Delegacia de Combate à Corrupção (Decor), da Polícia Civil do Estado do Ceará (PC-CE), Karlus Kléber.

O olhar que resiste a acreditar naquilo que está diante de si, na visão do delegado, é apenas uma herança cultural distante. Embora, na visão dele, algumas brincadeiras não são toleráveis, e ele cobra do filho adolescente que se imponha, caso alguém tente rebaixá-lo em razão da própria cor. É o tipo de aprendizado que o branco não precisa ter. É um treinamento que se move de geração em geração, como o pai do policial civil certa vez o ensinou, tendo em vista que o combate ao racismo no colo dos pretos é fato quase inevitável no decorrer de todo um trajeto de vida.

Assim como aconteceu com Karlus Kléber, um lar estruturado e o acesso a uma Educação de qualidade também foram fatores determinantes na vida do tenente-coronel Gledson Barbosa. O titular do Comando de Bombeiros do Interior (CBI) do Corpo de Bombeiros Militar do Estado do Ceará (CBMCE) relembra quando o filho dele foi confundido com um bandido por um grupo de alunas na chegada a uma universidade particular da capital. A ironia do destino é que elas e ele estavam iniciando o curso de Direito e terminariam convivendo por anos na mesma sala.

“Já passei também por uma situação dessas (de discriminação racial) em um shopping. Minha esposa estava experimentando algumas roupas e eu fiquei olhando outras roupas para mim, quando o segurança começou a me seguir. Aí ele me seguiu, eu ia para um lado; eu ia para outro, aí ele ia vinha atrás; e eu ia para um outro, e outro, e outro,… Aí, comecei a brincar com ele (ri). Minha mulher saiu do trocador, peguei a bolsa dela e falei para ele: ´meu irmão, você sabe que não precisava disso, bastava que me abordasse diretamente”, conta o bombeiro militar.

As mulheres e a negritude

Da mesma forma como acontece entre os homens negros, os ensinamentos entre avós, mães e filhas também são repassados de geração em geração. O papel social da educação familiar, aqui, muda de figura conforme o gênero. Enquanto entre os negros o aprendizado está focado em não ser diminuído moralmente perante os brancos, as negras são preparadas para conviverem com a sexualização dos próprios corpos e com questionamentos em relação à própria capacidade intelectual.

Quem pensa assim é a auxiliar da diretoria-geral da Academia Estadual de Segurança Pública (Aesp), sargento Camily David, e a membro da equipe de apoio da Superintendência de Pesquisa e Estratégia de Segurança Pública (Supesp), Kamila Kércia. “Não posso falar que a mulher branca sofre as mesmas coisas que uma mulher preta, não sofre. Ambas sofrem porque são minorias, claro. Mas a mulher negra sofre ainda mais no sentido da sexualização e também a sociedade não acredita na capacidade intelectual dela e não a coloca em posição de poder”, argumenta a policial militar.

“A minha avó dizia uma frase que as pessoas podem até achar um pouco estranha, mas é a realidade. Ela dizia que, sendo preta, a gente não podia usar qualquer roupa, as pessoas iam confundir a gente com algum criminoso. Você não pode se posicionar de qualquer jeito, senão as pessoas vão falar, como se diz aqui no Ceará, que você é ´moleque´. Você precisa andar mais arrumadinho, bem aparentado para não levantar suspeitas. (Como negro,) você precisa andar como se tivesse um status social mais elevado”, relata.

Virando a chave

“Nunca abaixe sua cabeça, não se diminua se alguém tentar lhe humilhar. A gente tem que se valorizar porque Deus nos fez assim. Eu tenho orgulho da minha raça, tenho orgulho de quem sou. Ser negra é ter orgulho da própria raça, é ter a força de vontade de enfrentar os percalços que aparecem. Porque os negros precisam estar atentos a tudo. Você vê a diferença, ele não precisa se justificar o porquê disso, ou porquê daquilo”, as palavras da Kamila Kércia, da Supesp, mais soam como mantras ensinados pela avó dela na infância.

Embora todos esses personagens reconheçam que a sociedade mudou, e muito, desde a época dos pais e avós, nenhum deles parece disposto a arredar o pé do combate ao racismo. “Se a pessoa negra tiver uma boa base familiar e o acesso a uma boa educação, com certeza ela vai se esforçar e vai alcançar os mesmos cargos que a população branca, ou parda, tem acesso. Se todos tiverem o mesmo acesso aos livros, às bibliotecas e aos estudos, independente de cor, acredito que o princípio da Igualdade estará cumprindo o seu papel”, pontua o delegado Karlus Kleber.

“A tendência é mudar porque se está conversando muito sobre isso. Antigamente, se você se sentisse mal, você não tinha espaço para dizer ´não gostei´. Hoje não, existe concurso público com cotas, existem mais negros em posição de destaque, também a mídia, e esse assunto está sendo mais debatido. É claro que ainda há muita luta. Mas toda a sociedade precisa estar pronta para ouvir e dar voz, para que as negras e negros possam falar das próprias dores”, complementa a sargento Camily David.