Das páginas dos jornais para as páginas dos livros, Lira Neto é homenageado com Medalha da Abolição 2024

2 de maio de 2024 - 16:20 # # # #

Isabella Campos - Ascom Casa Civil - Texto
Arquivo Pessoal, Divulgação e José Wagner - Casa Civil - Fotos
Rosane Gurgel - Casa Civil - Vídeo

O jornalista e escritor cearense será agraciado pela Medalha da Abolição no próximo dia 3 de maio

De criança que se apaixonou pela leitura enquanto acamada por um quadro de sarampo até se tornar um dos maiores escritores do país, sedento por desafios em sua escrita e vencedor de múltiplos prêmios Jabuti – o maior da literatura nacional. O jornalista e escritor cearense, Lira Neto, é um dos homenageados pela Medalha da Abolição 2024. “Para mim, receber a Medalha da Abolição é uma honra enorme. Por mais que esteja fora do Ceará há muito tempo, há mais de 24 anos, o Ceará nunca saiu de mim”, destacou Lira Neto.

Nascido em Fortaleza, em 1963, a trajetória de Lira Neto até se encontrar “trabalhador da escrita” teve uma série de altos, baixos e mudanças de percurso. Hoje, o jornalista formado pela Universidade Federal do Ceará (UFC), mestre em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), e doutorando em Discursos: Cultura, História e Sociedade, pela Universidade de Coimbra, em Portugal, diz nunca ter imaginado ser condecorado com a Medalha da Abolição.

Medalha da Abolição, pra mim, foi sempre uma coisa impensável. Nunca imaginei vir a ganhar a principal comenda do estado onde eu nasci. Pra mim, é uma demonstração de reconhecimento muito preciosa do meu povo, da minha gente, das pessoas que me escolheram, me nomearam para essa honrosa medalha”, ressaltou o escritor.

A felicidade pela comenda não fica apenas no biógrafo, se estende também para a sua esposa, a jornalista cearense Adriana Negreiros, que esteve ao lado do marido em todos os reconhecimentos recebidos ao longo dos últimos 24 anos. Ela enfatizou que nunca viu Lira “tão feliz ao receber um prêmio, um reconhecimento, como agora, com a Medalha da Abolição”.

“Ele realmente estava nas nuvens, muitíssimo feliz com o reconhecimento quando me contou. Porque é o reconhecimento de nossa terra, de onde nós viemos, de quem nos viu crescer e nos transformar em quem nós somos. Então, sem dúvida, é o mais valioso de todos”, ressaltou. “A Medalha da Abolição é um baita reconhecimento para trajetória do Lira, que é um personagem muitíssimo apaixonado pelo Ceará e que tem se dedicado também, no trabalho dele, a contar a história do nosso povo. Uma história de gente valente, como todos nós, cearenses, somos”, completou.

 

O encanto com as palavras

O encanto pelas palavras teve início quando Lira Neto tinha entre 8 e 9 anos e ficou acamado com um quadro de sarampo. Para lhe distrair do tédio, sua irmã lhe trouxe o livro “A chave do tamanho”, de Monteiro Lobato, um livro de 1942 que falava sobre as aventuras de Emília em busca da chave para desligar a guerra. Desde então, o escritor passou a conviver com as palavras, visitando constantemente a biblioteca da escola – quando ainda criança -, mesmo que seus colegas preferissem a quadra de esportes, e chegando a ler o dicionário de A a Z. Anos mais tarde, essa paixão pelas palavras o levou a cursar a faculdade de Letras – que foi abandonada.

Na juventude, eu havia feito, como muita gente da minha geração, aquelas folhinhas, que chamávamos de poesia marginal, poesia alternativa, que a gente xerocava, e fazia os próprios livretos e vendia de bar em bar, na porta do teatro, na porta do cinema, mas jamais imaginei que aquilo, um dia, ia ser a minha profissão, meu ofício”, ressaltou Lira. Apesar do carinho pelas palavras, e do contato com a poesia marginal, a profissão de jornalista – ou escritor -, não passava pela cabeça do então jovem.

Até perto dos 30 anos de idade, eu não tinha a mínima ideia de que ia ser jornalista, muito menos escritor ou biógrafo”, pontuou Lira. Próximo de seus 30 anos, Lira Neto tinha colecionado uma lista grande de ocupações, mas nenhuma o ligava ao que viria ser. Formado em topografia pela Escola Técnica Federal do Ceará – atual Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE), o jornalista tinha largado as faculdades de Filosofia e Letras, sido balconista em uma loja de motocicletas, trabalhado em trailer de vender sanduíches com o irmão e dava aulas em colégios de Fortaleza.

“Até então, a minha vida era completamente errática, não parecia acenar com nada parecido com o que vim me tornar. Até o dia em que um colega, professor, me disse que havia uma vaga na revisão do Diário do Nordeste”, contou.

Da revisão a redação

Depois de pisar pela primeira vez em uma redação jornalística, não demorou muito para Lira Neto perceber o que queria para sua vida – pelo menos, naquele momento. No mesmo dia em que foi fazer a prova de seleção, passou e já começou a trabalhar. “Precisei ligar pra casa para dizer que ia demorar a chegar. Então, me disseram que na revisão não tinha telefone, que só tinha na sala ao lado, que era a Redação, e que eu fosse lá ligar por qualquer um daquelas dezenas de telefone que tinham ali, naquela sala grande, bem em frente à nossa”, relembrou.

“Quando eu entrei na Redação para fazer o telefonema, eu disse: ‘Eu quero tá é aqui, quero tá nesse inferno maluco, nessa barulheira’. Na época, eram as máquinas de escrever, todas truando ao mesmo tempo. E eu disse: ‘Eu quero ficar é aqui, na Redação‘, e perguntei como é que fazia para mudar de sala, e aí me disseram que eu precisava fazer o curso de jornalismo”, complementou o escritor.

Depois daquela resposta, e de ter certeza do que queria, Lira Neto prestou vestibular depois de mais de dez anos de ter terminado o Ensino Médio, para Comunicação Social, com Habilitação em Jornalismo, pela UFC, e passou. “No segundo ou terceiro semestre, eu já não estava mais na revisão, estava na redação atuando como repórter na área de cultura”, contou. A partir dali, começava uma nova etapa da sua trajetória, que o levaria a mais de uma década em redações jornalísticas.

Conquista pela escrita

Foi nessa etapa de sua vida, que o jornalista encantou sua esposa com seu texto – sem saber –, antes mesmo de conhecê-la pessoalmente. “Eu já acompanhava a trajetória do Lira desde o final dos anos 1990. Quando eu entrei na faculdade de Comunicação eu acompanhava o trabalho dele no Vida & Arte, do jornal O Povo, e posteriormente no caderno Sábado, e eu era muitíssimo encantada pelo texto dele, pela maneira que ele escrevia, mesmo sem sequer saber como ele era fisicamente”, contou Adriana. Mesmo se encantando com a escrita de Lira Neto ainda nas colunas dos jornais, o encontro dos dois só aconteceu depois do lançamento do primeiro livro do autor, em 1999.

Orgulhosa do que o marido é hoje, Adriana fez questão de enfatizar que sempre soube que Lira “cresceria muito”. “Na época eu já pensava ‘Nossa, esse cara vai crescer muito’, porque ele realmente é de um talento impressionante. Porque ele tem a capacidade de alinhar duas qualidades que são muito essenciais para um jornalista, escritor, biógrafo e repórter da história, como ele gosta de se definir. Ele tem uma capacidade de pesquisa que é só dele e um texto que é de uma elegância impressionante, de uma qualidade, que é de dar inveja a qualquer outro profissional da escrita, como é meu próprio caso”, ressaltou a jornalista.

Dos jornais para os livros

Depois de dez anos trabalhando no jornal O Povo, onde foi repórter, editor e ombudsman, o jornalismo já causava inquietações no escritor, era uma mensagem para dar um passo adiante. “O jornalismo, que parecia ser aquele momento de encontro, enfim tardio, mas um encontro definitivo com a minha vocação, acabou por me trazer umas inquietações e algumas limitações próprias da forma de produção da notícia. O jornalista tem muito pouco tempo para apurar uma matéria, e muito pouco espaço para escrever ela, e aí foi que, acabei, migrando, aos poucos, lentamente da página do jornal para a página do livro”, explicou.

Foi ainda na redação do jornal que trabalhava que a inspiração para a primeira biografia se fez presente. Em um dia comum de apuração, um colega chegou com um material curioso. Em meio às escavações da obra de saneamento básico da Capital, um amontoado de esqueletos, com origem na epidemia da varíola que tinha ocorrido há mais de 100 anos no Ceará, podiam ser avistados. O assunto, que deu origem a uma série de reportagens, também deu origem a sua primeira biografia: O poder e a peste – A vida de Rodolfo Teófilo.

Há 20 anos, eu não faço outra coisa, a não ser escrever. Eu acho que é o que eu descobri que quero fazer, com a mínima competência possível. Pedi demissão das redações, e hoje sou um escritor que vive daquilo que escreve. Foi uma descoberta realmente tardia, mas eu diria que definitiva. Me descobri como escritor”, pontuou Lira Neto.

Após o pontapé inicial neste novo momento de sua trajetória, o escritor não parou de buscar personagens com uma vida cheia de altos e baixos, cheia de vitórias e fracassos, êxitos e derrotas – como ele mesmo descreve os melhores personagens para se biografar. Dentre suas obras como escritor, estão: Castello: A marcha para a ditadura; O inimigo do Rei: uma biografia de José de Alencar; Maysa: só numa multidão de amores; Padre Cícero: Poder, Fé e Guerra no Sertão; a trilogia de Getúlio; Uma história do Samba; Arrancados da Terra; e outras.

Apesar de ter exercido a profissão de jornalista com maestria, ser casado com uma jornalista, e utilizar os princípios que aprendeu na Comunicação Social para trabalhar em seus livros, foi como escritor – ou melhor – biógrafo, que Lira Neto teve suas maiores conquistas, colecionando prêmios por todo o país. Em seu nome já são quatro prêmios Jabuti – o mais tradicional prêmio literário do Brasil, concedido pela Câmara Brasileira do Livro (CBL), nos anos de 2007, 2010, 2013 e 2014, e uma vez o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), em 2014, entre outros reconhecimentos.

Inspiração

Em meio a mais uma escrita de obra, o vencedor de quatro prêmios Jabuti, dedicou a Medalha da Abolição, àquela que ele nunca considerou ganhar, a sua mãe, Dona Darci. “Quero dedicar especialmente a minha mãe, que, infelizmente, se foi há algum tempo e não estará entre nós. Porque tenho certeza que ela ficaria muito orgulhosa do filho dela”, destacou.

A mãe, que escrevia as redações do colégio para o pequeno Lira Neto, foi apontada como a sua maior inspiração na escrita. “Porque de escrita, tudo o que aprendi, foi com minha mãe, ela era a maior escritora do mundo. Nunca publicou nada, mas escrevia como ninguém”, complementou. “Vou cometer aqui uma inconfidência, mas era a minha mãe, que quando eu era criança, escrevia as minhas redações de colégio, e eu achava aqueles textos tão lindos e dizia: ‘Um dia ainda vou tentar escrever como essa mulher’. Então, Dona Darci, essa medalha, é pra senhora”, concluiu o biógrafo.

Medalha da Abolição

Maior honraria do Estado, a comenda, instituída em 1963, é concedida pelo Governo do Estadual em reconhecimento ao trabalho relevante de brasileiros para o Ceará e o Brasil.