Terreiros do Bom Jardim e da Granja Lisboa são quilombos de resistência para as religiões afro-brasileiras

12 de novembro de 2021 - 15:10 # # # # #

Sheyla Castelo Branco - Ascom SPS - Texto
Drawlio Joca e acervo pessoal - Fotos

Nas periferias de Fortaleza e por todo o Estado do Ceará, resiste a umbanda. A religião é o Brasil profundo com seus tambores, danças e rezas, pontos cantados, caboclos, pretos velhos, exus, erês e pombagiras. A religião de matriz africana, que é uma das expressões mais vivas e atuantes da cultura negra, completa 113 anos na próxima segunda-feira (15), no chamado Dia Nacional da Umbanda. Para marcar a data, celebrada no mês da Consciência Negra, a Coordenadoria Especial de Políticas Públicas para a Promoção da Igualdade Racial (Ceppir) da Secretaria da Proteção Social, Justiça, Cidadania, Mulheres e Direitos Humanos (SPS) convidou duas lideranças  de terreiros de umbanda, Mãe Kelma e Pai Neto, para compartilharem suas vivências à frente destes espaços míticos e religiosos.

“Esse terreiro é governado por mulher. No terreiro da pombagira só não  vence quem não quer”, canta, Ìyá Kelma Yemoja, a Mãe Kelma, que começa sua fala com esse ponto cantado exaltando a força das mulheres de axé. “Pombagira é a mulher livre, que faz sua própria caminhada e nos ensina a não compactuarmos com nenhuma prática de violação dos nossos direitos”, explica a liderança do Terreiro Casa da Vovó Inês, que funciona há mais de 20 anos no Bom Jardim, e que anteriormente era conduzido por sua mãe biológica, Mãe Simone do Ogum. Kelma é também assistente social, militante, trabalhadora da área de Saúde Mental, assessora do Coletivo Cultural Ayoká, pesquisadora, escritora, terapeuta de matriz africana e coordenadora da Rede Nacional das Religiões Afro-brasileiras e Saúde (RENAFRO/CE).

Mãe Kelma destaca que o orgulho de ser uma mulher de terreiro e de seguir inspirando outras mulheres a também assumirem postos de liderança nos seus movimentos vem da sua ancestralidade. “Eu venho de uma geração de mulheres fortes, minha avó era umbandista, então meus passos vêm de longe. Eu faço parte de uma história que não começa e nem termina comigo. Minha filha e minha neta frequentam o terreiro e  assim nossas histórias seguem entrelaçadas, vivas e potentes”, pontua Mãe Kelma, que enxerga a umbanda como um grande útero onde todos se cuidam mutuamente.

“No terreiro nos cuidamos com o outro”

“A umbanda tem sua ética, sua moral. O terreiro é espaço de vivência dos direitos humanos. Aqui nós cuidamos da lésbica, do(a) transexual, da travesti, do negro, do indígena, do idoso, da pessoa com deficiência. Não estamos aqui olhando títulos, antes de tudo enxergamos o ser humano que traz consigo suas dores, alegrias e contradições”, lembra ela, que no  auge da pandemia, no ano passado, fez uma série de lives com diversos temas para que as pessoas que procuravam o terreiro e também seus filhos dentro da umbanda pudessem se sentir acolhidos de alguma forma.

“Nós aproveitamos esse momento para falar da força dos orixás e como podemos trazer isso para nossa vida prática e melhorar nosso dia a dia. A Umbanda é acolhimento, tratamento e cura, muitos nos procuraram nesse período com muitos medos, ansiedade, depressão e nós conseguimos levar esse conforto através das conversas e sessões terapêuticas. No terreiro nós nos cuidamos com o outro, eu sou cuidada e cuido também, e assim  estabelecemos uma relação dialógica de cuidados, porque quem cuida de mim me dá possibilidades de aprender para que eu também possa cuidar”, complementa Ìyá Kelma Yemoja.

A coordenadora da Ceppir, Martír Silva, lembra da importância de celebrarmos o Dia Nacional da Umbanda. “Nós precisamos celebrar nossas raízes, dizer do que temos orgulho, e enaltecer o que nos fortalece”, afirma  Martír, que aponta a urgência de combatermos no nosso dia a dia a intolerância religiosa, uma forma de racismo.  “A cultura negra está muito presente na formação do povo brasileiro, seja  nas religiões afro-brasileiras como a umbanda e o candomblé, seja nas comidas como vatapá, mugunzá, azeite de dendê e tantas outras que muitos de nós não temos conhecimento de que são de origem africana. Para combater todo e qualquer tipo de intolerância, racismo e a ignorância sobre nossas raízes,  nós da Ceppir nos comprometemos a dar visibilidade às vivências e histórias do nosso povo. Neste mês nós queremos convidar os cearenses a conhecer suas origens, sua ancestralidade, sua história”, complementa a gestora.

Pai Neto, Guardião da Memória

Filho e neto de rezadeiras, Pai Neto Tranca Rua conduz há mais de 30 anos um terreiro de umbanda na Granja Lisboa. No bairro, foi eleito Guardião da Memória por pesquisadores e moradores do Ponto de Memória do Grande Bom Jardim. Além do terreiro, Pai Neto dirige junto com o filho, Giuliano de Freitas, a  Associação Espírita de Umbanda São Miguel, que possibilita à comunidade participar de cursos e diversas formações. Pai Neto é um dos idealizadores da Festa de Iemanjá, que acontece todo mês de agosto no Ceará.

Herança Ancestral

Dentre as histórias e  lembranças de sua infância, ele se orgulha da trajetória que vem construindo ao longo destes anos  e de toda a resistência que representa seu terreiro. “Nós temos muito orgulho de sermos umbandistas, aqui até os tambores somos nós que produzimos”, conta Pai Neto, que também tem a profissão de ferreiro, e já passou este saber para filhos e netos.

Nós estamos aqui até hoje porque resistimos, basta lembrar da festa de Iemanjá, que se tornou patrimônio cultural da  nossa cidade depois da luta dos povos de terreiro. Oficialmente, nós realizamos esta festa desde 1983, mas temos registros de 1952, no Náutico, que provam que a Festa de Iemanjá já acontecia há muito tempo no Ceará, o que nos prova que estas expressões e festas dos povos de terreiros sempre existiram, só que antes sofriam uma repressão muito maior”, lembra.

Enquanto Pai Neto conta sobre o passado dos povos de terreiro, seu filho Giuliano de Freitas (33) aponta para o futuro. Morando vizinho à casa do pai, o pesquisador e também pai de santo está construindo seu próprio terreiro. “Ser umbandista é muito mais que orgulho para mim, eu levo como uma missão de vida mesmo. Hoje eu tenho bem claro que o nosso trabalho é também social, além de espiritual. Nós  estabelecemos uma conexão de muita familiaridade com as comunidades do entorno dos terreiros e isso sinaliza o quanto é importante que as políticas públicas nos alcancem e nos contemplem, destaca, Giuliano de Freitas, que apontou a existência de mais de 150 terreiros só na Granja Lisboa e uma média de 700 no Grande Bom Jardim.

Mais que espaços de acolhimento e de cura, terreiros são escolas de vida que seguem resistindo com a cultura negra presente nos 184 municípios cearenses.